EL CONDE

Conde: “Por que não consigo morrer?

Lucía: Porque não quer morrer.

Conde: É claro que eu quero morrer. Estou vivo há 250 anos.

Lucía: E podemos viver mais 250.

Conde: Eu não quero viver mais 250 anos, meu Deus.

Lucía: Por que não?

Conde: Porque me chamaram de ladrão. Um soldado pode ser chamado de assassino ou que for, mas não de ladrão. Matei centenas de comunas. Centenas. E vão me acusar para sempre de ter roubado. Me humilharam.

Lucía: Mas você roubou. Ou não? Vamos fazer o seguinte. Você me morde. E nós saímos à noite, pra caçar. Apenas sangue. Depois vamos… Ao subsolo, onde ficam os corações. Aí comemos os corações e rejuvenescemos. E aparecemos em outro país, com outros nomes. Com quinze anos. E outro exército.

Conde: Não entendo por que eu não consigo morrer. Você põe sangue na minha comida para que eu continue vivo.

Lucía: Hã. Não?

Conde: “Presidente Allende! O exército não vai traí-lo!”

Lucía: Quê?

Conde: Eu disse isso a ele. E aí? No dia seguinte, eu o traí. Eu o traí.

Lucía: Foi ideia minha. É, mas ninguém sabe disso.

Conde: Essa era uma rixa antiga, minha. Eu tinha uma missão. A missão de esmagar… De esmagar os… os anarquistas. Esmagar os sindicalistas, os republicanos, os escravos libertos.

Lucía: Mas se apaixonou por mim.

Conde: Estamos juntos há sessenta anos, o que mais você quer? Você já teve de tudo: filhos, netos. Foi a rainha deste deserto. Poxa. Por que reclamar: tomamos uma taça de brandy toda noite, conversamos, dormimos de mãos dadas. O que mais você quer?

Lucía: Ser um monstro, como você.

EL CONDE

O novo filme diretor chileno Pablo Larraín trata-se de uma comédia de humor negro, que retrata o general e ditador chileno Augusto Pinochet como um vampiro de 250 anos. O filme teve sua antestreia marcada para a 80.ª edição do Festival de Cinema de Veneza, que ocorreu entre os dias 30 de agosto e 9 de setembro deste ano. El Conde competiu pelo Leão de Ouro de Veneza, mas levou apenas o prêmio de melhor roteiro. Atualmente pode ser visto na plataforma de streaming Netflix.

Pablo Larraín, é mais conhecido por suas cinebiografias pouco convencionais como Spencer (2021), Jackie (2016) e Neruda (2016). Aqui ele faz uma abordagem ousada ao retratar a vida de Pinochet como um ser imortal. Larraín e seu colaborador frequente Guillermo Calderón foram os responsáveis pela elaboração do roteiro, eles entregaram um filme de terror sobre uma personalidade que foi polêmica e horrível, transformando a história em algo que provoca reflexões e sentimentos dúbios.

El Conde começa com a juventude de Claude (nome dado por sua mãe) na França, e mostra seu amor e devoção pela burguesia francesa, e o acompanha durante seu reinado no Chile de 1973 a 1990. A maior parte do enredo se passa após sua morte oficial em 2006, quando Pinochet (Jaime Vadell) se sentia humilhado pelos chilenos que não reconheciam ele como um benfeitor, por ter livrado o país dos “comunas”. Ele deu um golpe em Salvador Allende e durante o tempo que o Chile esteve sob seu domínio, mais de três mil pessoas foram assassinadas e outras 30 mil torturadas.

Usufruindo do seu post mortem indo morar em uma mansão decrépita com seu estranhamente leal mordomo Fyodor Krasonv (Alfredo Castro), um russo forjado na vodca e no aço, que teve a família morta pelos bolcheviques, acabou “amparado” por Pinochet, matando milhares de pessoas para o general. Naquele lugar longe dos olhos da civilização, ele habita com sua nociva esposa Lucía Hiriart (Gloria Münchmeyer).

Seus cinco filhos, que não viam a hora de colocar a mão na herança de um pai que eles sabiam que não ia morrer tão cedo. Dinheiro esse que foi acumulado ao longo dos anos de maneira fraudulenta, com contratos escusos que ele tinha com empresários. Em troca de fortuna ele dilacerou parte do dinheiro público.

Um dos filhos contrata uma freira para fazer um exorcismo, eles achavam que o pai não morria porque estava tomado pelo diabo. Apesar de que uma das filhas achava que ele já tinha nascido assim, um monstro.

A freira, Carmencita (Paula Luchsinger), depois que chega naquele mausoléu, para não chamar atenção, finge ser uma contadora que vai fazer um levantamento do dinheiro deles. Ela acaba se tornando uma espécie de Van Helsing de hábito, e sua personagem adiciona uma camada de intriga à história. Durante a pesquisa que ela está fazendo com o Conde, parte das respostas que ele responde, são trechos tirados quando ele foi preso em Londres, para prestar esclarecimentos sobre o genocídio que ele estava sendo acusado.

Carmencita é a freira que se sacrifica em nome da fé. Foto: Netflix ©2023

Pinochet descobre sua verdadeira malignidade quando era jovem, ele consegue eliminar duas mulheres e um padre que tentava matá-lo com uma estaca. Ele é um verdadeiro amante monarquista, depois que Maria Antonieta perde a cabeça na guilhotina, ele rouba essa parte do corpo dela e guarda como um souvenir. Colocando ela em conserva dentro de um jarro de vidro. Depois que ele finge sua própria morte, ele luta contra as revoluções ao longo dos séculos, mudando sua identidade e tornando-se cada vez mais jovem. Eventualmente, ele acaba no Chile como o jovem tenente Augusto Pinochet e sua carreira prossegue, liderando uma ditadura sangrenta. No entanto, ele cai e é humilhado.

Ele quer morrer de verdade, deixa de se alimentar de sangue e corações, entrando em um dilema existencial, não quer mais passar 250 anos por aí. Mas antes ele precisa lembrar onde escondeu sua fortuna. Os filhos foram ao seu encontro para isso, receber o que eles acham que merecem, porém, vão ter que dividir entre si a parte que será entregue primeiro para a mãe deles.

A propriedade afastada onde Pinochet reside é construída com base na traição e Madame Pinochet é, na verdade, uma maquiavélica Lady Macbeth, sob o manto pesado embebecido de sangue. Ela sempre cobra a mordida que ele nunca deu nela, até Fyodor foi mordido e ela não. Traí o marido com o serviçal, e mais tarde trama a morte do próprio Conde, tudo por não ter sido a escolhida na vida eterna.

DEUS É APAIXONADO PELA BELEZA DE SUA PRÓPRIA CRIAÇÃO. ELE É UM ARTISTA VAIDOSO. UM ARTISTA QUE CRIOU AS MULHERES PARA… PARA SEREM PERFEITAS.

Pronta para exorcizar o vampiro mor Carmencita acaba sendo mordida por ele, causando um atrito entre uma vampira misteriosa que tem acabado de chegar. É a mãe de Pinochet. Ninguém menos que Margaret Thatcher (Stella Gonet), que tinha sido uma pobre camponesa, durante uma noite foi transformada por um homem que abusou dela. Atravessou séculos e foi parar no Reino Unido, quando se casou e adotou o sobrenome Thatcher do marido. Ela tinha ficado grávida e deu a luz em 1766, nasceu um menino.

Por ironia do destino, de fato Pinochet teria na sua árvore genealógica sangue francês. Quando ele foi preso em 1998, ele estava em Londres se recuperando de uma cirurgia. Margaret reconheceu o filho, quando o encontrou uma vez em Londres. Ela retorna depois que ele transforma Carmen, exigindo que ele mate ela, apaixonado ele não cumpre o pedido.

Foto: Netflix ©2023

Fyodor captura a freira decepa sua cabeça, enfurecendo o Conde, que devolve na mesma moeda. Lucía também morre e Pinochet resolve partir com a sua mãe. O verdadeiro tesouro dele eram livros raros, como os diários originais de Charles Darwin, as cartas que Napoleão escreveu para o irmão, o manuscrito de “Mein Kampf” de Adolf Hitler e a Declaração de Independência do Chile.

Uma parte do filme é filmado em monocromático, exceto os minutos finais, quando os vampiros depois de beber o sangue de outro vampiro e comer os corações se tornam jovens novamente. Larraín rejuvenesce a atmosfera sombria com cor, para passar exatamente essa ideia. É interessante como a escuridão total da vida de Pinochet e sua filharada foi retratada. A maneira como ele é mostrado quando está vestindo seu uniforme e capa de general, e sai voando para as cidades para jantar com as vítimas e prefere arrancar corações para obter o melhor sustento.

O diretor discorre nas quase duas horas de filme, de maneira metafórica, com passagens sinistras, sobre essa figura repugnante que de fato sugou o sangue dos chilenos. Por mais que os desdobramentos cômicos sejam entregues, o riso pode não vir fácil. Destaque para a narradora e a maneira como essa trama é desenhada por ela, como ela mesma diz, uma mãe não abandona seu filho. Margaret vai para o sul do Chile na tentativa de salvar sua linhagem, e evitar que ele acabe morrendo.

Lindamente filmado em preto e branco pelo aclamado diretor de fotografia Ed Lachman, aquela névoa embaçada que insiste em pairar sob a residência da família, de aspecto pesado e sombrio. Toda a construção da cinematografia foi bem acertada. O trabalho do som também merece um ponto positivo e a criação dos efeitos sonoros realçam o clima de mistério. A trilha sonora composta por grandes clássicos, que inclui Verdi – Laudi alla Vergine Maria, Siciliana, Op. 78 – Gabriel Faure, Concerto para Violoncelo em Ré Menor, RV 406: I. Allegro non molto – Antonio Vivaldi, ajudam a moldar o tom do filme.

Foto: Netflix ©2023

Foi interessante como os roteiristas escolheram adaptar o tema do vampirismo na construção de uma metáfora perceptível. Contudo, Larraín conduz de maneira honesta seu trabalho, elaborando pitadas de humor ácido na narrativa. A alegoria do filme pode se estender em excesso, suas referências a Maria Antonieta e à Guerra das Malvinas, pode ser intricada demais para os menos atentos.

Ainda assim o filme acerta na utilização dos elementos de terror e nos hábitos tradicionais de como os vampiros são mostrados na ficção. A trama continua apresentando novos meandros no fio que sustenta o centro do viés político. É inserido personalidades históricas importantes que entram no enredo, para contextualizar a história. Didático em alguns momentos e por vezes repetitivo em algumas sequências.

Mesmo tendo pequenos erros, por exemplo, uma freira não pode praticar o exorcismo, mas a licença poética é permitida, já que estamos lidando com uma obra do não realismo no cinema. El Conde é um filme que tem seus atrativos, é intrigante, que traz partes da índole de seres nascidos do mal, com sagacidade e estilo. Boa escolha para aqueles que gostam do gótico não rotineiro e da sátira política.

FICHA TÉCNICA

El Conde (idem, 2023, CL)

Diretor: Pablo Larraín.

Elenco: Jaime Vadell, Gloria Münchmeyer, Alfredo Castro, Paula Luchsinger, Stella Gonet, Catalina Guerra, Amparo Noguera, Antonia Zegers, Marcial Tagle, Diego Muñoz e Clemente Rodríguez.

Roteiro: Pablo Larraín e Guillermo Calderón.

Fotografia: Ed Lachman.

P&B e Cor.

Duração: 1 h e 50 minutos.

Produção: Cristian Donoso, Rocío Jadue, Sergio Karmy, Juan de Dios Larraín, Guillermo Migrik e Alejandro Wise.

Direção de Arte: Tatiana Maulen.

Maquiagem: Ana Gaubert.

Idioma: Espanhol, Inglês e Francês.

Empresa de produção: Fabula.

País: Chile.

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