MEPHISTO

Também tenho pele, ossos, um corpo…cílios e unhas, como você. Eu sinto frio, fome e sede. Também penso na minha mãe. Eu sei que existem filisteus e comunistas. Mas meus olhos não são meus olhos. Minhas pernas não são minhas pernas. E meu rosto não é meu rosto. Meu nome não é meu nome… Porque sou um ator! Sabe o que é um ator? Um ator… um ator… Um ator é uma máscara… entre seres humanos”. Hendrik Höfgen/Mephisto (1982).

Antes e depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a indústria cinematográfica buscava inspiração em temas que seguiam um padrão. No período da guerra apenas a Polônia foi proibida de fazer filmes, o regime do Terceiro Reich tinha medo que o cinema transfundisse a propaganda nacionalista, vista em particular em muitos filmes soviéticos, antes da Segunda Guerra, eles tinham que ter total poder sobre o cinema. Durante o nazismo muitos diretores, atores, escritores, e qualquer manifestação cultural, teria que ser baseada nas tradições alemãs.

Hendrik Höfgen (Klaus Maria Brandauer) é um ator oriundo do palco de um teatro que faz panfletagem comunista. Ele tenta implantar um teatro mais revolucionário, enquanto entra em atrito com um ator ligado ao partido nazista. Incomodado por não conseguir avançar nas mudanças que gostaria de fazer e por não chegar logo ao estrelato com suas peças, ele pede autorização do dono do teatro e parte para Berlim. Antes ele se casa com Barbara Bruckner (Krystyna Janda) uma ricaça de posses, que pode dar uma estabilidade financeira para Höfgen, mas antes de se casar ele mantinha uma amante mestiça, a dançarina Juliette Martens (Karin Boyd), que ele a mantém sempre nas sombras.

As coisas mudam para Höfgen quando ele cai nas graças do Primeiro-ministro Tábornagy (Rolf Hoppe) que acha que ele é a pessoa ideal para representar a verdadeira e pura cultura alemã. Nada de encenar histórias bolchevistas. Sua ascensão profissional é vista através de várias montagens em diferentes papéis no teatro. Incluindo uma delicada adaptação de Hamlet. Para montar a peça ele tem que dispensar algumas pessoas, que são consideradas persona non grata para o III Reich.

Höfgen até tenta intervir, ele acha que a sua permanência no teatro pode ajudar alguns artistas. Ele não consegue salvar seu amigo Otto Ulrichs (Péter Andorai), ele é informado que ele teria cometido suicídio. Sua esposa temendo o pior insiste para que ele se mude para Paris com ela, ele descarta a ideia, ele não iria, já que tudo que ele sempre desejou, que era a fama, agora estava aos seus pés.

Entretanto é com a encenação do personagem criado por Goethe (1749-1832), Mefistófeles, do poema Fausto, que ele chega no topo. Ele fica debaixo da asa de pessoas influentes que fariam muita coisa por ele, se ele apoiasse a causa. O que eles não sabem é que em casa, Hendrik tem um funcionário judeu, e sua amante é uma mulher negra que ele trouxe para Berlim.

Pressionado ele tem que escrever uma autobiografia, mas sem incluir seu passado no teatro comunista e a dançarina negra teria que sumir não só das páginas do seu livro, como da sua vida. Ela é levada para a fronteira e não é mais vista. Só que Mefisto encontra um jeito de visitá-la em Paris. Enquanto isso seu divórcio acontece, a pedido Tábornagy.

Sua ex-esposa é considerada uma traidora da pátria, por ter fugido para outro país. Sem conseguir avançar com outras peças, pois algumas restrições são impostas, ele tem que contratar atores loiros e de olhos azuis, óbvio que todos alemães. O problema é que nem todos são suficientemente bons. Ele se casa pela segunda vez, com uma atriz que era sua amiga, enquanto ainda é rodeado por outras amantes.

O ato mais covarde cometido por Mefisto foi quando ele dedurou um ator, que ele considerava seu rival. Hans Miklas (György Cserhalmi) já desgostoso com o rumo que o partido nazista tinha tomado, pede que Hendrik assine um abaixo-assinado. Prevendo uma conspiração os patrocinadores de Mefisto matam Miklas. Para Höfgen ele era uma pedra no seu caminho desde Hamburgo.

Aos poucos ele vai ficando sufocado em ter que levar uma vida que terá que interpretar vários papéis que agradem ao Reich. Por causa da sua ambição ele vai ter que pagar um preço alto, significa ficar amarrado aos agrados dos superiores do governo. É isso ou ter uma vida digna, mas sem os louros da fama, a possibilidade de ir para os Estados Unidos e trabalhar como cenógrafo ou ator coadjuvante era muito pouco para ele.

Mephisto (1982) é um filme impressionante sobre a busca e ascensão da fama, no meio artístico, em pleno domínio da ocupação nazista. Hendrik Höfgen tem uma paixão pelo teatro, segundo ele, as artes têm que ter um patrono, para ele não importa quem vai financiar, o importante é que a arte não morra. Ele tem seus princípios, sua vida é o teatro, ele aguenta o fardo que tem que carregar por continuar atuando na Alemanha, quando todos já se foram. Seu demorado abraço no nazismo não lhe faz bem, mas ele não é um nazista, tão pouco compactua com qualquer ideia deles, ele aceita o tapa na cara por ser amante do inimigo.

O filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1982, e melhor roteiro em Cannes, além da fama internacional para o húngaro István Szabó. É de uma linguagem voltada para o clássico, é o começo de um outro cinema Alemão, já que o Cinema Novo se enceraria com a morte de Rainer Werner Fassbinder. Szabó por meio desse filme expressa suas experiências em regimes totalitários, através da jornada de Hendrik Höfgen.

No primeiro ato vemos sua sagacidade como diretor de teatro, na metade sua escalada até o reconhecimento é mostrada com uma montagem de várias cenas em momentos diversos quando ele está no palco. No último ato Höfgen é filmado em planos abertos, em meio as gigantescas suásticas, ele fica tão pequeno, um ser insignificante para o que ainda estaria por vir.

O roteiro é baseado no livro de Klaus Mann (filho do autor alemão Thomas Mann) já o romance é inspirado na vida de Gustaf Gründgens, ator que ficou conhecido por ter feito um papel no filme M, o vampiro de Düsseldorf (1931). Ele prosperou no teatro alemão nos anos 30 e durante o nazismo. Não só ele manteve sua carreira, Conrad Veidt saiu da Alemanha, mas ficou mundialmente famoso depois que fez o Major Strasser, em Casablanca (1942). Werner Krauss interpretou o famigerado rabino no filme Jud Süss (1940) e a escritora Thea von Harbou era membro do partido nazista, seu marido o cineasta Fritz Lang abandonou o país e fez carreira em Hollywood, ela continuou lá.

NÃO SOU O VILÃO MAIS TERRÍVEL QUE VOCÊ JÁ VIU?

O único momento em que Hendrik Höfgen assume fora dos palcos sua vilania, é quando ele entrega Miklas. Até de uma maneira ingênua ou cínica, ele se mostra surpreso com a morte do seu inimigo. Hendrik nunca é visto como o centro de tudo, as coisas que estão acontecendo ao seu redor são muito mais terríveis do que seus lampejos morais.

No fim do que valeu caminhar até o triunfo se o mundo estava desmoronando? E Höfgen como artista achava que não era seu dever interceder ou se rebelar contra isso ou aquilo. Sua última fala é um questionamento, “O que querem de mim?”, “Afinal de contas, sou apenas um ator”.

No mundo de hoje se posicionar politicamente é lei, Hendrik seria visto como um artista que se corrompeu para o mal, um traidor, ele nem política fazia. Ser nacionalista no mundo atual é uma vergonha para a família, amizades são desfeitas e dedos em ristes são apontados.

Ter amor à pátria gera desconfiança. Höfgen não queria sair da Alemanha, ele dizia que amava sua terra. Perguntado uma vez porque continuava em Berlim, ele respondeu dizendo que morava no teatro. Essa vergonha de ser nacionalista deve ser uma lenda, um mito, uma herança da extrema-direita, Mefisto não tinha vergonha de estar onde ele estava.

FICHA TÉCNICA

Mephisto (idem, 1981, HUN/ALE/OST)

Direção: István Szabó.

Elenco: Klaus Maria Brandauer, Ildikó Bansági, Krystyna Janda e Rolf Hoppe.

Roteiro: Péter Dobai e István Szabó (baseada na novela de Klaus Mann).

Produção: Manfred Durniok.

Trilha sonora: Zdenkó Tamássy.

Fotografia: Lajos Koltai.

Edição: Zsuzsa Csákány.

Direção de arte:József Romvári.

Cor.

Duração: 144 minutos.

Gênero: Drama.

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