ORFEU DO CARNAVAL (1959)

Benedito: Orfeu, eu queria te perguntar uma coisa, é verdade que você pode fazer o sol nascer tocando violão?

Orfeu: Ora se posso.

Benedito: [para Zeca] Eu não te disse. [para Orfeu] Você pode fazer o sol se

levantar amanhã?

Orfeu: [rindo] Mas é claro, ainda mais que amanhã é dia de Carnaval.

Zeca: O que você toca para fazer isso?

Orfeu: Eh, eu invento! Orfeu do Carnaval/1959

Quando André Bazin (1918-1958) descreveu como que a linguagem cinematográfica estava evoluindo e de que forma a nova maneira de fazer cinema estava tomando um estilo próprio, ele dizia:

é contar uma história numa linguagem clara e perfeitamente transparente. Poucos movimentos de câmera que tornem sensível a presença da câmera, poucos primeiros planos que não correspondam à percepção normal do nosso olho. A decupagem decompõe a ação, de preferência, em planos americanos, porque eles se mostram mais realistas. Toda a arte se reduz, portanto, a esse tipo de decupagem, cujas regras, otimizadas, são agora bem aceitas e conhecidas. […] Pela primeira vez desde as origens do cinema, os cineastas trabalham, no que diz respeito à técnica, nas condições normais do artista. […] O estilo do cineasta moderno cria-se a partir de meios de expressão perfeitamente dominados e tornados tão dóceis quanto o estilógrafo”. L’Écran Français, n.°60, 21 de agosto de 1946. Esse “estilógrafo” que ele menciona, que mais tarde Alexandre Astruc batizou de câmera estilógrafo, seria a expressão do pensamento do cineasta através das imagens, equiparando os filmes como obras de ensaios ou mesmo um romance.

O diretor Marcel Camus (1912-1982) que era amigo dos colaboradores da revista francesa Cahiers du Cinéma, chegou a ser assistente de Astruc, assim como muitos diretores franceses começou a filmar depois do pós-guerra. Mas foi com a adaptação de Orfeu da Conceição, peça escrita por Vinícius de Moraes, que ele ficou mais conhecido internacionalmente. Black Orpheus como é chamado pelos estrangeiros, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro (1960) e a Palma de Ouro em Cannes (1959).

Camus que se inspirou no neorrealismo, utilizando atores amadores, cenas em locações reais, dividiu, e divide até hoje opiniões favoráveis (fez sucesso no exterior) e desfavoráveis (no Brasil) sobre a adaptação do mito de Orfeu. Que na mitologia grega foi poeta, apaixonado pela ninfa Eurídice. Quando ele tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para ouvi-lo.

O roteiro de Orfeu do Carnaval (Black Orpheus, 1959, FRA, BRA, ITA) foi escrito por Marcel Camus e Jacques Viot, colaborador de Camus em outras produções, eles recriaram nos morros da Babilônia (fica entre os bairros de Botafogo, Urca, Leme e Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro) a história do sambista e também condutor de bonde, Orfeu (Breno Mello), que durante o Carnaval do Rio se apaixona por Eurídice (Marpessa Dawn) uma jovem recém-chegada do interior. O romance dos dois desperta o ciúme na noiva de Orfeu, Mira (Lourdes de Oliveira), que vai fazer de tudo para atrapalhar o casal.

O filme foi vendido lá fora como sendo uma tragédia negra grega estilizada, nome pomposo para mascarar as falhas do roteiro e adaptação. É uma coprodução franco ítalo-brasileira, na França o filme é conhecido como Orfeu Negro (assim em português mesmo), aqui no Brasil essa primeira adaptação recebeu o título de Orfeu do Carnaval.

Quando Eurídice reclama com Serafina (Léa Garcia) que tem um homem que pretende matá-la, sua prima acha que é apenas alguém que está apaixonado por ela, que ela não deve se preocupar. Nesse meio tempo ela e Orfeu namoram escondido e Eurídice desfila na escola de samba no lugar de Serafina, mas com uma fantasia que não revela nada do seu rosto. Além de Mira, a Morte (Adhemar Ferreira da Silva) que é homem que persegue ela no morro, vai até onde está acontecendo o desfile de Carnaval e tenta matar Eurídice.

Não são só os pássaros que param para ouvir Orfeu tocar seu violão, mas Zeca e Benedito que acreditam que ele é capaz de fazer o sol nascer. O ator que fez Orfeu, na verdade era jogador de futebol, serviu como atacante do Fluminense. Não é ele que canta no filme, ele é dublado por Agostinho dos Santos, e o violão também foi dublado por Roberto Menescal.

Existe um certo incômodo na maneira como Marcel Camus retratou o povo carioca, temos de tudo ali; a favela rebuscada de uma alegria infinita; Samba; Macumba; Carnaval; e imagens que sinalizam um país da felicidade. Ser favelado e morar em um lugar digno de cartão-postal, nós não teríamos do que reclamar.

O filme deixa registrado uma das paisagens mais bonitas do mundo, admirada não só pelos brasileiros, mas pelo grande número de turistas que visitam o Rio de Janeiro. Camus passeia com sua câmera pela enseada de Botafogo, Copacabana, pelo monumento do Pão de Açúcar, une belle tournée.

O Rio mesmo com toda aquela miséria, hoje mais assolado pela violência, não deixa de ser o retrato da desigualdade do Brasil. O morro naquela época era um ambiente quase que rural, as construções de alvenarias eram raras, os barracos eram de madeira, mas o domínio do tráfico e as balas perdidas ainda não existiam, um local idílico. A ingenuidade de um povo que poderia trocar quitutes da feira em troca de um beijo na testa, se a morena fosse bonita. A vida se resumia a sair batucando e dançando por qualquer coisa.

O elenco escolhido para o filme de Camus foi majoritariamente composto por pessoas negras e inexperientes no campo da atuação, exceto por Léa Garcia e Lourdes de Oliveira. Isso fez com que o filme se tornasse pioneiro a contar com um grupo de atores negros em um filme. Ainda foi considerado pela crítica internacional como um recorte pulsante da cultura brasileira, mesmo não sendo visto com o mesmo esmero pelo público local.

E podemos entender o motivo dele ter sido esnobado pela maioria tupiniquim. Essa festividade sem fim, como se não houvesse amanhã, é a imagem que parte dos estrangeiros têm do Brasil. Culpa disso em parte é de nós mesmos, sempre vendemos mal o país lá fora, sinônimo de terra sem lei e mulheres nuas. Valorizamos sim o Carnaval, o Samba, a alegria, mas não vivemos isso 24 horas.

Marcel Camus cometeu muitos pecados com Black Orpheus, Breno Mello foi muito mal escalado, sua composição é caricata, e carece de profundidade, culpa dele e do roteirista Viot. Mello só foi chamado para fazer o personagem por conta da amizade com o compositor Ronaldo Bôscoli, que achava que ele deveria esquecer a carreira de jogador de futebol e virar ator. Bôscoli que pode ser creditado como o autor de algumas gírias faladas no filme. Por sinal todos os personagens falam de uma maneira fora do usual para os nativos do lugar, é como se eles tivessem decorado suas falas através de um fonógrafo.

Outra inserção duvidosa é que a trama começa na época do Carnaval, até aí tudo bem, se não fosso o fato de que Orfeu vai até o prédio do Ministério do Trabalho, representando sua descida ao inferno, e misteriosamente, a repartição está aberta. Quando Orfeu carrega o corpo de Eurídice do centro, saindo da praça Paris, e vai com ela morta nos braços até o morro da Babilônia, não precisa nem ser morador do Rio para saber que esse percurso foi totalmente incoerente.

Além da falta do “malandro carioca” do Orfeu de Camus, as belas locações da cidade só não são mais aproveitadas, pela escolha errônea do diretor de fotografia Jean Bourgoin. Os filtros utilizados por ele atrapalhou na luminosidade natural do lugar, são imagens granuladas, que não deveriam ter sido aplicadas.

Mesmo não tendo a consistência devida, o filme de Camus, tem na sua trilha sonora o ponto que eleva o filme para filme de arte. Tom Jobim, Luiz Bonfá, Vinícius de Moraes e Antônio Maria foram os responsáveis por melodias gloriosas, como “Manhã de Carnaval”, “O Nosso Amor”, “A Felicidade”, que ainda incluíam os batuques do Candomblé, e as músicas das Escolas de Samba. Sem esquecer o vilão melódico de Orfeu.

Quem se deu bem com a venda dos discos que tinham a trilha gravada do filme foi o russo Sacha Gordine, que também era produtor do filme e que tinha entrado em contato com Vinícius para a adaptação cinematográfica. Certo dia ele deixou a equipe parada por várias semanas. Durante o tempo que os atores ficaram sem filmar, não receberam nem um pagamento em dinheiro, mas Gordine faturou uma boa grana quando editou e lançou as canções do filme no mercado internacional.

Não foi só a trilha que trouxe grata surpresa, o filme surpreende sim, e tira proveito do casal de amantes e seu fim trágico. Com todos os enganos ele foi bem filmado. As referências mitológicas ainda estão lá, o porteiro no prédio que representa o barqueiro que navega no rio Estige, no corredor cheio de tiras e confetes de papel.

Aconteceu uma estreia especial no Palácio do Catete (Brasília só se tornaria a capital do país em 1960), para o então Presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), o autor da peça estava presente. Mas Vinícius ficou tão desapontado com o rumo que Marcel Camus deu para a sua história, que largou JK sozinho durante a exibição do longa.

Mas é necessário se despir do ar de superioridade ao assistir Black Orpheus, não vamos atirar pedras na visão (quem viu o filme até o final vai entender), digamos, singular, que Camus pintou na tela do cinema. De um Brasil exótico, musical e folclórico, quem dera sermos assim tão abundantes de ingenuidade.

Os moradores parecem ignorar os conflitos de suas vidas miseráveis, a inexistência da óptica da precariedade da vida na favela e os erros geográficos são fatores que impedem que o filme seja um produto que fala da verdade de um Brasil que não existe mais, ou que talvez nunca existiu.

FICHA TÉCNICA

Orfeu do Carnaval (Black Orpheus, 1959, FRA, BRA, ITA)

Diretor: Marcel Camus.

Elenco: Breno Mello, Marpessa Dawn, Lourdes de Oliveira, Léa Gracia, Adhemar Ferreira da Silva, Waldemar De Souza, Alexandro Constantino, Jorge dos Santos, Aurino Cassiano, Maria Alice, Angenor de Oliveira (Cartola) e Euzébia Silva do Nascimento (Dona Zica).

Roteiro: Marcel Camus e Jacques Viot, baseado na peça Orfeu da Conceição (1956) de Vinícius de Moraes.

Produção: Sacha Gordine.

Duração: 100 minutos.

Cor (via Eastmancolor).