CREPÚSCULO DOS DEUSES (70 ANOS)

Anotação 2020-03-26 181037
Norma Desmond: “Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”.

Não posso continuar com a cena. Estou feliz demais! Sr. DeMille, se importa se eu disser algumas palavras? Obrigada. Só quero dizer o quanto estou feliz de estar de volta ao estúdio, fazendo um filme novamente! Não sabem o quanto senti a falta de todos vocês. E prometo nunca deixá-los de novo! Porque depois de Salomé, faremos outro filme e depois outro! Sabem, isso é minha vida! Sempre será! Não há nada mais. Apenas nós e as câmeras e as pessoas maravilhosas lá na escuridão. Está bem, Sr.DeMille, estou pronta para o meu close.” Norma Desmond/Crepúsculo dos Deuses (1950).

Crepúsculo dos Deuses que inaugurou uma atmosfera diferente no cinema, consolidado de vez com O que aconteceu com Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?, EUA, 1962) ficou conhecido como Hagsploitation, que são filmes protagonizados por atrizes mais velhas, que fazem personagens desequilibrados, insanos ou diabólicas.

Sempre aplaudido pela crítica como um dos melhores filmes já feitos Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., EUA, 1950), por sinal considero um dos títulos mais bonitos, foi o nono filme dirigido por Billy Wilder, e que logo em seguida faria A montanha dos sete Abutres (Ace in the hole, EUA, 1951). Tento pelo menos uma vez por ano rever algum filme de Wilder, e em comemoração aos 70 anos de lançamento escolhi este.

Outrora estrela do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson) abriga em sua mansão na Sunset Blvd., estilo Xanadu de Cidadão Kane, um desempregado roteirista, Joe Gillis (William Holden), que fugia dos credores. Depois de deixar seu carro escondido na garagem da atriz, em compensação teve que lhe fazer um favor. Gillis vai reescrever um roteiro que Norma vinha desenvolvendo para o seu imaginário retorno triunfal. Mas antes ela se apaixona por ele, seu fim será trágico como anuncia o prólogo com o corpo de Gillis boiando na piscina de Norma. O defunto é quem vai narrar a história do seu relacionamento com a ex-diva megalomaníaca.

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Na noite que Joe Gillis chega na mansão, Norma que confundi ele com o rapaz que faria o enterro do seu chimpanzé, recém-falecido, que Gillis achava que deve ter sido um animal muito “importante”. Depois de aceitar o convite de reescrever o roteiro e receber pelo trabalho, já que estava passando por dificuldades financeiras, com o tempo ele vai desfrutando do glamour.

Foi recriado um visual pomposo para a mansão, estilo que lembra Fantasma da Ópera, ao mesmo tempo cafona e cheio de babados, cortinas e pó. Outra referência ao filme de Orson Welles é o close nas luvas brancas quando Max, o mordomo, está tocando o órgão. A ostentação da casa que parece ter parado no tempo, quando Gillis relembra que outros artistas famosos também poderia ter passado por lá, como se o cinema mudo fosse um artefato sem utilidade, algo empoeirado, relembrado apenas nos devaneios de Norma.

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EU SOU GRANDE. OS FILMES É QUE FICARAM PEQUENOS

Em um certo momento Wilder introduz a quebra da quarta parede, ato oriundo do teatro de Bertolt Brecht, comum na literatura e no cinema também, quando um personagem fala olhando diretamente para a câmera. Quando Norma relembra como era atuar no cinema mudo, e como as falas estragaram com tudo, “Nós não precisávamos de falas. Nós tínhamos o rosto.” Como eram exageradas as expressões faciais dos atores nos filmes mudos, nesse ponto a personagem já perdeu toda a sanidade e Swanson brilha no close-up amargo do diretor.

Não deixa de ser uma homenagem para a era de ouro do cinema mudo, nomes como Buster Keaton, conhecido como o “palhaço que não ri”, que é título de um filme de mesmo nome, ele surge envelhecido numa mesa de jogo de cartas. Até o famoso Cecil B. DeMille  aparece interpretando a si mesmo, em uma curta participação autodepreciativa. Por um equívoco de um funcionário da Paramount, que liga para Norma para que ela faça uma visita, ela acha que vão contratá-la e filmar Salomé.

Na verdade estavam atrás apenas de alugar o carro dela para uma filmagem. Ela encontra seu antigo diretor DeMille, e este que não faz ideia do que Norma está falando, sobre um possível retorno. Ele conta que agora o cinema está diferente, que tudo mudou e não é mais era como antes, Wilder corta, e foca as botas lustradas de DeMille e seu andado pomposo de alguém que deixou de ser importante há muito tempo.    

Mesmo que Norma seja uma figura insana, e que não vai conseguir escapar do crime que cometeu, ela era alimentada por sonhos de que lá fora uma imensidão de pessoas estavam esperando para a sua volta, “Odeio essa palavra! Este será um retorno!”. Mal sabia ela, que era seu mordomo Max (Erich von Stroheim), que dentro da lista de três maridos que ela já teve, ele foi o primeiro marido dela. Era ele que escrevia as cartas se passando por fãs. Gillis insiste que ele conte a verdade para ela, é cruel alimentar sonhos de um passado que não volta mais. Erich von Stroheim foi de fato quem descobriu Gloria Swanson, dirigiu ela em Queen Kelly (1929), um trecho é exibido na luxuosa sala de Norma.

O papel de Norma Desmond antes oferecido para Mary Pickford, Mae West, e Pola Negri, como sabemos, todas recusaram. A composição de Swanson para o personagem de Norma é um trabalho cheio de caras enrijecidas, até grotescas, que são uma versão parodiada da sua própria vida e de outras celebridades. Max o sinistro mordomo, e o cinismo de DeMille, representam um passado que não teria mais lugar no futuro do cinema. Tanto que este foi o último filme de Swanson, ela se aposentou em seguida.

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No fim, depois de descobrir que Gillis estava escrevendo um outro roteiro, com uma moça mais jovem e apaixonado por ela, que deixa Norma Desmond enraivecida e ela acaba atirando em Gillis. Tragédias e escândalos envolvendo celebridades sempre pairaram em Hollywood. É um filme que conta a história amargurada sobre a solidão das grandes estrelas e o seu fim, não existe fim pior para uma estrela de cinema que a morte em vida.

Seu monólogo no último ato é um misto de horror e glorificação, que quando ela desce as escadas da assombrosa mansão estão todos quase que imóveis. Wilder iniciava o espetáculo midiático da imprensa, quando aponta a câmera para os repórteres do cinejornal, ávidos para retratar o escândalo de uma ex-diva do cinema. A exploração da mídia não mudou nada nesses 70 anos pós-Crepúsculo dos Deuses, mas por debaixo do verniz do crime, já anunciado no começo do filme, Wilder fez uma homenagem para uma era que ele reverenciou e viveu, ainda que muito sombrio.

FICHA TÉCNICA

Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., EUA, 1950)

Diretor: Billy Wilder.

Elenco: Gloria Swanson, William Holden,  Erich von Stroheim, Nancy Olsen, Fred Clark,

Lloyd Gough, Jack Webb, Franklyn Farnum, Larry J. Blake, Charles Dayton, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton, Anna Q. Nilsson, H. B. Warner.

Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder, D. M. Marshman Jr., inspirado no conto “A Can of Beans”, de Charles Brackett e Billy Wilder.

Fotografia: John F. Seitz.

Trilha Sonora: Jay Livingston e Frank Waxman.

Duração: 1h50 min.

P & B.

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